a duras penas

Eu sei, não dá pra abraçar o mundo com as pernas; e nem com os braços. Não dá pra afagá-lo, pondo debaixo das asas.

As asas que, às vezes, regamos; que, às vezes, nos roubam; que, quase sempre, nos podam. As que cultivamos em segredo.

Tenho um rastro de penas no chão, sou penosa. Mas me perco em buracos. Os de fora, os dentro.

Os meus, os dos outros. Eles doem, eu não grito, emudeço. Muda, porém não mudam.

Sempre os mesmos dramas, sempre novos dramas. Novas dores, novos buracos.

Nem que tivesse todas as penas do mundo;

sem mundo e sem penas, sou de nada.

A sóis

Saiu sem rumo com a roupa do corpo. Deixou pra trás a casa de taipa, caindo aos pedaços e no chão batido a carcaça do que um dia foi Mimosa. Arqueja de fome; não se via onde começava a barriga ou onde terminavam as costas. A roupa surrada, maltratada de terra era avermelhada. A mesma cor dos pés rachados no barro.

Na estrada, a falta de vegetação e vida não dava esperança. O caminho se estendia até onde conseguisse aguentar. Do chão soprava um bafo quente sem alívio, era melhor que não ventasse.

Faltava pouco pro Sol dar trégua; à noite, ao menos, a agonia tinha céu estrelado. Só céu.

O barulho no breu era solitário, mas o arrastar das solas o mantinha em vigília. Topou numa pedra e sentiu o dedo arrebentar. O líquido quente misturado com areia untava o que não se via. Tampouco doía.

Havia tempo já que a dor não o visitava. De outra feita não teria chegado até lá e faltava muito ainda o que andar.

 

taipa

Espera

Um apito surdo grita longe, pausadamente. Se não estivesse presa no alto de um centro urbano, poderia confundi-lo, poeticamente, com um pedido de socorro.

Do fim do corredor, às vezes, crescem passos de salto que batem no assoalho, ecoando até o fundo. Até mim. Outros são apenas sombras, refletidas no chão de brilho. Um molho de chaves balança e abre a porta.

A sirene passa voando no asfalto, onde seus semelhantes buzinam. O ronco potente dos motores chega ao décimo quarto sem pestanejar. O elevador chegou ou partiu, não sei, estou de cabeça baixa. Toc, toc, toc vem alguém aí.

Abrem-se e fecham-se as portas repetidamente nas paredes paralelas. Toc, toc, toc alguém aí se vai.

O celular toca e atende uma voz a menos de um metro. Ela grita. Penetra em mim, sem querer, a conversa sobre o que terão para o jantar. Minha barriga compreende e remexe; ninguém ouve, espero. Passa do meio dia.

Há pouco mais de três horas aguardo o único som que me interessa: Vanessa Augusta, chama a secretária.

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