no fundo dos seus olhos castanhos tão claros

sabe, eu gosto do jeito como você me olha. como você mexe no meu cabelo enquanto tô sonolenta, sem vontade de acordar, e me acaricia.

eu podia morar ali; naquele instante em que abro os olhos e percebo sua vigília silenciosa sob a luz do dia que nos invade.

vejo como você me filma; atento, detalhista. me atrevo a dizer que enxergo um sorriso largo no fundo dos seus olhos castanhos tão claros; sua boca permanece impassível. não há nada que eu já não saiba.

O preço que se paga pela liberdade

Me peguei na sessão de limpeza do supermercado. Surgiu uma dúvida cruel entre os melhores tipos de sabão, se em pó ou líquido, melhor de um litro ou 500 ml, será que vou usar isso tudo mesmo, vou deixar pra lá o amaciante porque tô lisa. Dois extensos minutos da vida gastos pensando seriamente em um único assunto. Até mudar de prateleira.

Qual é mesmo a necessidade de comprar papel higiênico dupla face amaciado cheiroso e gostoso?, me perguntei. Puta que pariu papel higiênico caro do caralho. Foi bem mais fácil escolher baseada nos números, percebi. E eu que sempre reparei nos coloridos papeis perfumados da casa do vizinho ao lado com o gramado mais verde que o meu. Foda-se.

Brother, esperei ansiosamente pelos 16 anos quando poderia ver filmes mais excitantes no cinema. Achei que tinha virado adulta quando tirei a carteira de motorista. Me surpreendi com todos os feitos até então quando entrei na faculdade. Paralisei e depois pirei com o primeiro salário e então, depois, quando me dei conta que estava na faculdade, assalariada, com carteira de motorista e supostamente livre. Entrei em êxtase mas nada, nada disso, me fez surtar tanto quanto comprar o meu primeiro papel higiênico.

Ninguém nunca me falou sobre isso. As pessoas não ficam por aí sonhando com o dia de entrar pela sessão de limpeza, encarar a prateleira e escolher aquele super papel fodástico pra limpar suas cagadas. Não mesmo.

Mas naquele momento o pacote de 4,99 olhou fixamente pra mim e disse: sou eu, minha filha, sou eu que vou limpar suas cagadas daqui por diante porque não, você não tem dinheiro pra pagar o dupla face amaciado cheiroso e gostoso, então conforme-se, esse é o preço que se paga pela liberdade.

 

 

 

Fica

Sou fã de gente bonita. Aquele tipo que arranca sorrisos de cara pelo bom humor ou pela doçura inesperada. É o tipo de gente que não se encontra em qualquer esquina ou vagando na madrugada. Também não tem endereço.
Gente bonita, eu tenho impressão, acontece. Você esbarra e se ilumina e não quer mais apagar; não quer retroceder.
É o tipo que muda o que somos por existir e nos permitir enxergar que realmente existem.
Pra mim, gente bonita não tem cara, tem voz. Tem um timbre que toca e ecoa em mim, nas minhas profundezas e me faz emergir do fundo escuro de um poço sem dimensão.
Me faz rir. Gente bonita quando passa fica um pouco mais. Fica um pouco do que ela disse; um pouco do que ela é.
Gente bonita não é só beleza, é imensidão. Aquece, acalma, alegra a alma. Gente bonita não vai, fica.

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Trapezista

A marca roxa se formando na lateral esquerda da minha bunda me ensinou que as quedas fazem parte do equilíbrio e que ele, por si só, vive na corda bamba. Não é nada parecido com o cruzar das pernas , sentadas, aparadas pela prudência do chão.
Parte do equilíbrio é não meditar. Manter-se em movimento, cambaleante, mesmo inseguro e consequentemente ir às quedas, e ainda assim não deixar-se abater.
Cair é também ser equilibrista. Levantar, recomeçar, manter um pé à frente do outro, de braços abertos, numa dança lenta com olhos firmes no horizonte; foco.
É o oposto de firmeza apesar da contradição. É ser maleável, de moldura imperfeita e assimétrica. Tenho me mantido em treino, desejo corpo e alma de equilibrista.

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Chacoalha

A casa estava desarrumada como sempre para tal visita. É de presença non grata, e apesar da baixa frequência de aparições, causa sempre estragos.

Esse tal psicológico afetado que me deixa aprisionada às terríveis sensações. Impossível de esquecer quando bate à porta.

Puxar o ar e ele faltar configura entre os principais quesitos da minha lista negra. Nela, seguem calafrios assombrosos, seguidos de tremores e impressão de desmaio. Não posso deixar de mencionar aquele segundo, em que o coração dá sinais de falta de comando, não sei se pifa ou sai pulando; tem vontade própria.

É engraçado pensar que tudo isso é comandado pelo meu precioso cérebro, comediante nato, caixinha de pandora. Nunca vi mais malcriado filho. Psicológico. Tá ruim de educar a mim, que dirá colocar um outro ser no mundo; perdição.

Vou recuperando o ar que me fugiu. Acalmando os nervos, passou-se o frio repentino e a súbita ânsia de pedir socorro. Fiquei eu, mais uma vez, de volta à minha realidade paralela. Inacreditável como a corrida desenfreada de pensamentos são desnorteante. Como faz barulho dentro da cachola, que ensurdece qualquer tentativa de acordar do transe. Transe sequelado, devo acrescentar.

Os drinks da noite passada também não fizeram bem. Me chacoalham o juízo até agora. Ressaca de arrependimento. Amanhã é outro dia e já tenho assunto para tratar com a psicóloga.

 

desnorteada

Enredo inverossímil

O verão dá adeus demoradamente por essas bandas. Conhecendo sua personalidade calorosa, diria que ele parte sem vontade. Já sinto, aqui da varanda, a brisa menos ardida e cada vez mais mansa. No alto, enxergo folhas que dançam em seus galhos finos, uma canção que não escuto. Parecem felizes; emanam aquele brilho verde, como as pessoas com quem costumava estar, com chama nos olhos. Com um pouco mais de sorte, ouço passarinhos a cantar, embora não os veja.

Não são tão solitários os meus pensamentos quando me encontro aqui. De certa forma, estou rodeada de vida e ela conversa comigo, num cinema mudo. Eu também converso com ela, do meu jeito. Balanço a rede devagar e componho o cenário dia após o outro.

Longe daqui, rodeada de rostos irreconhecíveis, a solidão assusta. Ela fica evidente nos passos firmes que finco pelas calçadas de pedra. Na falta de riso frouxo; na desenvoltura tímida e desconcertada de não pertencer.

A contradição do instante torna o enredo inverossímil. Num lugar distante o espírito encontrou céu claro, fugido da tormenta do seu próprio lar. Perder-se para achar-se não parece tão estranho, afinal.

Inverossímil

Colo quentinho, um bocadinho

Chove aqui. É o meu típico dia de preguiça preferido. Nesses dias, costumo demorar a sair da cama e, se saio, será sempre o lugar para onde vou voltar, afinal de contas, não existe algo tão espontaneamente maravilhoso quanto ficar na cama em dia de chuva.

Abri os olhos pela manhã e desejei fazer como sempre: não sair por nada, nem ninguém. Só comer e dormir e curtir a minha preguiça chuvosa. E então lembrei que tinha um balde abarrotado de roupas sujas para lavar; a feira da semana retrasada que sempre retardo a fazer e só lembro quando percebo que não tem nada na geladeira que eu tenha vontade de comer; e o almoço, que claro, não ia ficar pronto a menos que eu levantasse para preparar. Fechei os olhos e retardei mais um pouquinho.

Lembrei da minha mãe, tive saudades de casa e telefonei, claro, declarando rendição. Querendo colo. Desejando abrir a porta do quarto e sentir o cheiro da cozinha, a poucos passos de mim, onde a comida estava prontinha e quentinha; a roupa dobradinha pronta para ser guardada e a feira feita. Ela riu.

A roupa está estendida, o almoço sendo digerido, mas por enquanto falta coragem de ir ao mercado. Evidente que tem um aviso cerebral me lembrando de que devo levantar a bunda da rede, senão, não terei como escovar os dentes mais tarde. Prometo adiar só mais um bocadinho.

preguiça

Até que estanque

Gosto de escrever, mas escrever é maior do que eu. Costumo pensar que não é uma escolha que me surge, não preciso de papel, nem teclas, a junção de palavras se forma na minha cabeça em uma sequência que faz todo o sentido e a partir dali a menor tarefa é transcrever.

Não tenho escrito muito, o suficiente, nem com constância… apesar de saber que escrever também é disciplina, eu preso pela escrita quando ela brota. Transcrevo quando sangra, quando dói, ou quando extravasa o sentimento. Parece mais verdadeiro. Eu deixo sair as angústias, os receios e temores que assolam a minha cabeça e que tanto tenho medo de dizer em voz alta.

Hoje a dor foi surpreendente. Veio de súbito, dando rasteira, colocando a casa abaixo. Aquele segundo do relógio que faz toda a diferença. Num instante o peito pesa, a respiração foge, a garganta engasga e a fala some. Num segundo água vira vinho que passou do ponto.

Nesse momento escrever virou uma necessidade. Não existem palavras faladas que consigam expressar o segundo que virou no relógio esta tarde. E, muito provavelmente, elas não conseguiriam ser ditas sem que a fala embargasse. Talvez por isso eu não queira pronunciá-las. Esse choro que tá preso, embora pese, não merece ser derramado.

Seria mais fácil se fosse raiva. Com a raiva eu consigo lidar, eu acho. Tenho tentado não manter sentimentos ruins para não criar cânceres com coisas que não valem a pena. Mas não consegui ter raiva.

Está sangrando. E vai demorar até que estanque. Decepção não mata, é o que dizem; sinceramente, decepções severas me fazem perder a fé na humanidade e me transformam, mas pra pior.  Me dói, me dói ainda mais saber que eu não vou sarar.

Bolo de nervos

Acabo de colocar um bolo no forno para assar. Sim, isso é grande coisa para mim, oras. Nunca, em toda história da minha vida, tinha feito alguma parte desse processo sem a inspeção de um adulto do lado. E que eu lembre, o único momento em que eu participava ativamente era na hora de comer, ou na hora de passar manteiga e farinha na forma, o que não requer muitas habilidades e até eu podia fazer.

O fato é que hoje está sendo um dia diferente. Acordei cedo – pode-se dizer que acordei cedo, porque não costumo acordar nesse horário -; fui ao supermercado fazer minhas comprinhas, incluindo os ingredientes do bolo, claro; voltei, tomei um café da manhã com frutas e comecei o preparo da minha meta.

Aparentemente deu tudo certo e ele está assando. Deve dar para notar o quanto estou ansiosa em vê-lo pronto, mas essa é outra parte do processo.

Que minha mãe não me ouça, mas ela nunca aprendeu a fazer bolo, coitada. Sempre tinha alguma coisa que dava errado e ou ele acabava duro, ou não crescia, ou muito fofo, ou intragável… na infância quem me fazia bolo era a minha vó. Eu sempre aperreava o juízo dela para preparar um para mim, mas frequentemente ela dizia: “para fazer bolo tem que estar boa dos nervos”. E não fazia.

Nunca entendi o que raios os nervos tinham a ver com aquilo, mas hoje me caiu a ficha. Não é que ela tinha razão? Na verdade ela só não soube me explicar o ditado. O que ele quer dizer, em minha opinião, é que você tem que estar com a memória fresca, para não esquecer nenhum elemento. E acho que era justamente esse o problema da minha mãe.

Para garantir, eu segui a receita, passo a passo. E por isso a minha esperança é tão grande de que ele dê certo. De qualquer forma, apesar da quentura do sol minha cabeça tá fresquinha, ainda mais agora.

Só Deus sabe há quanto tempo eu não lambia uma tigela com massa de bolo crua com as mãos, os dedos, e o que mais me desse na telha. Sim, porque eu não me lembro de quanto tempo faz. Não como bolo quentinho feito em casa desde que minha vó se foi. Hoje pareceu que ela estava ao meu lado, me vigiando, para eu não ser traquina.

Também não lembrava como lamber os dedos sujos de massa de bolo trazia uma felicidade instantânea tão ingênua e deliciosa. Por uns instantes quase pareceu que eu estava naquela velha cozinha com vovó Écila me dizendo para não ser peralta.

Bolo

O que se leva

 Passeio vagaroso em fim de tarde a lugar algum.

Ao fundo um som ecoa sem protagonizar a cena; o ritmo é leve e combina com o laranja solar salpicado na tela azul de céu.

Contra a luz, a mata é ausência de cor misturada à presença de pássaros no mesmo tom, mas em movimento de infinito.

Na pele, o sol deita devagar em aceno de despedida, enquanto o vento faz carícia.

O odor é penetrante e arde as narinas que decoram o filme sem revelação.

por do sol