a duras penas

Eu sei, não dá pra abraçar o mundo com as pernas; e nem com os braços. Não dá pra afagá-lo, pondo debaixo das asas.

As asas que, às vezes, regamos; que, às vezes, nos roubam; que, quase sempre, nos podam. As que cultivamos em segredo.

Tenho um rastro de penas no chão, sou penosa. Mas me perco em buracos. Os de fora, os dentro.

Os meus, os dos outros. Eles doem, eu não grito, emudeço. Muda, porém não mudam.

Sempre os mesmos dramas, sempre novos dramas. Novas dores, novos buracos.

Nem que tivesse todas as penas do mundo;

sem mundo e sem penas, sou de nada.

doçura minha de me encontrar em qualquer canto

queria hoje muito que não está aqui. também não estou lá.

no barulho da água correndo, me levando de leve e me deixando de monte.

no verde solar de risos fartos e frouxos, dos pés no chão.

dos pés nas alturas das quedas dos rios, eu cachoeira.

na doçura minha de me encontrar em qualquer canto. não mais aqui.

 

comment tu t’appelle

Paixões. Prefiro tê-las, é claro. Não recordo de ter dispensado oportunidade de senti-las, nem que só. Somente só.

Minhas paixões não passam, ficam em nomes pronunciados a meu contentamento, ou desprazer.

De dores, sem dúvida. Não reconheço paixão sem dor, porque para mim, sentir profundamente remexe as entranhas e se me corroer toda de prazer não é também dor, não sei o que seria.

Paixão alivia. Nesses dias que transcorrem cheios de pressa minha paixão demora. Passeia pelas linhas do rosto e decora as marcas impressas, filma os olhos e boca rodeada de pelos ou mesmo sem.

Elas não vão embora. Sempre ficam os trejeitos, a roupa dormida, a cara amassada, como me sentia.

Quando pronuncio seus nomes voltam na pele os dias. As paixões.

Delírios meus

O coração bate contra o colchão, mas preferia não ter que ouvi-lo. As pancadas

ensurdecedoras ecoam no silêncio do quarto iluminado pela janela sem cortinas;

refletem como luz em paredes de espelho e me voltam, que nem facas.

Sinto penetrarem ao longo dos membros como se ensaiassem uma forma de tortura

psicológica de mim para comigo mesma.

Desassistida da razão puno a mim pela perturbadora existência do meu ser. Que

expande e se apodera de outros mundos, não os meus.

Parte de mim grita na tentativa inútil de abafar as pancadas, e as agulhas e a dor. Parte

de mim sucumbe e espera os olhos fecharem lentamente, enquanto o corpo desliga e

se despede.

Nenhuma de nós vence. A briga acaba assim como começa, sem motivo. Um teatro

debochado das minhas vidas e dos meus eus.

Aprendi que não se morre de amor, mas nada sei sobre os delírios. Os meus são

mortes. Percebo-os em partes, em goles, conta gotas. Enterro-as nas minhas

profundezas, as mortes. A sete palmos de mim.

Restam as memórias dos delírios vividos, embora não sinta saudades.

Sereno

Ouvia compenetrada a voz que traduzia sedutoramente os prédios, inéditos, que surgiam à minha frente, enquanto o carro parecia flutuar. A história recente da cidade indecifrável se desdobrava a cada rua infindável em semelhanças.

A noite mansa de sereno penetrável se acomodava nos canteiros verdes arborizados, rodeados de construções nada aleatórias, e eu me deixava hipnotizar pela voz branda de alguma música brasileira, até então desconhecida.

Me acostumei com o tom da paisagem, que passou a ficar cada vez menos mutante. Sem tráfego e à meia luz dos postes, entramos no parque sem alarde e sem companhias, num quase breu afora estrelas. Olhei pra ele com os olhos arregalados e no segundo seguinte desejei fugir.

Estúpida, burra, idiota. Você perdeu completamente a noção do perigo? Quem é esse cara? Não foi por aqui que viemos, pra onde estamos indo?

Chequei o velocímetro a menos de 60 km. O quanto posso me machucar saltando daqui nessa velocidade?, pensei. Não dá pra morrer, mas será que consigo correr depois?, respondi com outra pergunta. Se eu não sei onde eu tô, pra onde eu corro? Parece mais perigoso lá fora, respondeu uma voz misteriosa parecida com um fio de consciência.

Estampei um sorriso petrificado com os olhos ainda arregalados numa histeria muda e o encarei. De frente, o medo, contra um fiapo de coragem que me fazia tremer os ossos e ter dúvidas se era frio.

Por acaso você é um serial killer típico de filme? Porque essa tá parecendo uma cena perfeita…

Não o vi mover um milímetro de preocupação ou surpresa; a voz doce e inalterada tentou apaziguar minha aflição à medida que o carro pairava pelo parque escuro. Ele me olhava com  o rosto tão sereno quanto a noite, e então eu tive certeza.

Sweet danger

Tirou do bolso do short um pequeno embrulho, miúdo, acompanhado de uma chave comum, sem chaveiro. Abriu-o com facilidade, mas com delicadeza, sem deixar o conteúdo completamente exposto. Recolheu com a ponta da chave uma pequena porção como uma pitada de sal e inalou, de olhos levemente cerrados, não sem antes certificar-se de que não havia perigo. A narina esquerda pareceu-me suja de maisena e a partir de então foquei minha atenção nela.

Sentados na areia, de costas pra favela acesa e muito perto do mar conversamos por horas. Antes e depois de ter visto alguém consumir cocaína na minha frente, sem alarde e sem me oferecer, pela primeira vez  e – espero que – última na minha breve vida.

Tive medo. Não por mim, embora saiba dos inevitáveis riscos de estar em companhia de portadores de drogas. Tive medo por eles, mas não deles. À minha frente, o casal de ingleses entorpecidos pareciam-me perfeitamente normais e me senti estúpida por não perceber antes. A garota me corrigiu: naive.

Deu-me uma rápida aula de como a cocaína atua no cérebro e mostrou suas pupilas dilatadas nos olhos azuis – seu único sinal aparente. O rapaz, falante, não parou de gesticular com as mãos enquanto conversava e bebia o drink preparado ainda em casa.

Mergulhei na profundidade daquilo enquanto jorrava da boca dela uma densa quantidade de experiências distantes de mim.

O enredo me prendeu. Namorou um drug dealer com pai e mãe viciados em crack e anfetaminas, nessa ordem. Admitiu ter se alimentado do vício na droga e já quase ter tido uma overdose. O pai é alcoólatra e há pouco tempo tentou suicídio, segundo ele por amor.

Os olhos dela encheram de lágrimas e então os meus. Incrédulos. Balbuciei algumas palavras de consolo e falsa compreensão, apesar de ter pego emprestada sua dor. Limitei-me a sentir e por um instante esqueci de julgar.

Favela

Foto retirada de: http://kayfochtmann.de/albums/brazil-1/content/kfochtmann-brazil-23/ (Kay Fochtmann)

Humor quadriculado

Fui agredida por um traveco na terça. Não é como se fosse um dia qualquer. Acordei tarde, como sempre, mas não estou na casa de sempre, nem no bairro de sempre, na cidade em que costumava morar. De todo jeito, não é todo dia que uma mulher de 1,90 cm – não reparei se estava de salto – pula na sua frente, insana, gritando que “não é viado, é travesti” e te dá uma bolsada.

Eu, a pessoa mais pacífica do mundo desde 2014, não reagi. Sim, porque se fosse a eu de 2004 estaríamos no chão até agora. Ou uma de nós estaria muito derrotada e essa, com certeza, não seria ela.

Mas não reagi. Tentei dialogar, o que foi inútil, óbvio, até que percebi o estrago iminente e corri. Ainda sem entender o porquê, mas corri. Eu, que sempre tento entender as coisas e por isso parei pra dialogar com o travesti.

Não era exatamente isso que queria dizer. É engraçado – sempre muito tempo depois e a quilômetros de distância – pensar nas bizarrices que acontecem comigo, no entanto acho ótimo porque eu sempre acabo sendo a pessoa mais cômica do bar, contando por tudo que passei e os amigos acham hilário porque agora, tenho que concordar, é isso que é.

Como a vez que o meu cadarço ficou preso na escada rolante.

Era a minha primeira vez no Rio e também a primeira vez que andei de avião. Era também a época do Natal, que por sua vez é a época do meu aniversário e esse ano, em particular, ganhei presentes que lembro até hoje.

Estava eu feliz e saltitante no shopping, passeando com a minha família carioca e o meu super hiper ultra mega power All Star quadriculado que ganhei de aniversário. Ele combinava com o meu vestido, também quadriculado, em preto e branco.

Enfim. Estávamos descendo a escada rolante, coisa que eu não costumava fazer até então, quando me abaixei pra amarrar o cadarço do tênis e minha tia disse ” Vanessa, deixe pra amarrar quando sair da escada porque seu vestido pode prender”.

Tudo o que eu fiz foi obedecer e voltar pra minha posição inicial feliz e saltitante. Mas boca de mãe, e nesse caso não importa se a mãe é sua ou não, é boca de praga.

Todos desceram da escada, menos eu, que comecei a ser engolida pelo cadarço. Não foi uma cena bonita.

Eu gritava “acode, acode, tia”, minha vó com as mãos na cabeça “o pé dela, o pé dela”, enquanto minhas primas tentavam puxar meu pé e eu era erguida pela minha tia dizendo “tira o tênis, tira o tênis” e eu “o tênis não, o tênis não” e minha vó “tira o tênis, vai prender seu pé” e eu “O TÊNIS NÃO, O TÊNIS NÃO”.

O momento não deve ter durado um minuto, do contrário hoje eu poderia estar sem pé. Eu também não sei como ficou o entalamento na escada rolante, nessas horas não se presta muita atenção, mas lembro que só no que eu pensava era que não queria perder meu All Star novo, quadriculado, e esqueci até que tinha pé.

Os tênis me acompanharam por um bom tempo, com o cadarço direito marcado de graxa, até que cheguei numa fase de crescimento que eles não me serviam mais.

O preço que se paga pela liberdade

Me peguei na sessão de limpeza do supermercado. Surgiu uma dúvida cruel entre os melhores tipos de sabão, se em pó ou líquido, melhor de um litro ou 500 ml, será que vou usar isso tudo mesmo, vou deixar pra lá o amaciante porque tô lisa. Dois extensos minutos da vida gastos pensando seriamente em um único assunto. Até mudar de prateleira.

Qual é mesmo a necessidade de comprar papel higiênico dupla face amaciado cheiroso e gostoso?, me perguntei. Puta que pariu papel higiênico caro do caralho. Foi bem mais fácil escolher baseada nos números, percebi. E eu que sempre reparei nos coloridos papeis perfumados da casa do vizinho ao lado com o gramado mais verde que o meu. Foda-se.

Brother, esperei ansiosamente pelos 16 anos quando poderia ver filmes mais excitantes no cinema. Achei que tinha virado adulta quando tirei a carteira de motorista. Me surpreendi com todos os feitos até então quando entrei na faculdade. Paralisei e depois pirei com o primeiro salário e então, depois, quando me dei conta que estava na faculdade, assalariada, com carteira de motorista e supostamente livre. Entrei em êxtase mas nada, nada disso, me fez surtar tanto quanto comprar o meu primeiro papel higiênico.

Ninguém nunca me falou sobre isso. As pessoas não ficam por aí sonhando com o dia de entrar pela sessão de limpeza, encarar a prateleira e escolher aquele super papel fodástico pra limpar suas cagadas. Não mesmo.

Mas naquele momento o pacote de 4,99 olhou fixamente pra mim e disse: sou eu, minha filha, sou eu que vou limpar suas cagadas daqui por diante porque não, você não tem dinheiro pra pagar o dupla face amaciado cheiroso e gostoso, então conforme-se, esse é o preço que se paga pela liberdade.

 

 

 

Oco

Reclamou do amor ao vento, desconfiada de sua resposta. As folhas sopraram, inquietas, num redemoinho seco pelo pátio vazio e escuro, como quem grita em sussurro e de onde não sai voz.

As lástimas, como reflexo, se debatiam aos quatro cantos e voltavam vibrantes, com vestígios de carne e osso machucados.

Não houve resposta no eco mudo. Só o farfalhar das folhas no cimento bruto a céu aberto sem nuvens; elas também calaram.

Nenhuma gota d’água foi derramada ao chão. Apenas atravessava o peito o desconforto de sofrer dissimulada, emudecida pela incompreensão alheia.